O trombonista norte-americano Ryan Keberle não tem tanta familiaridade com o som de alguns músicos brasileiros que fizeram e fazem história com o instrumento – como Raul de Barros (1915-2009), Raul de Souza (1934-2021) ou Bocato – quanto deve ter com o trabalho de Tommy Dorsey (1905-1956) ou Curtis Fuller (1932-2021), dois dos papas do trombone de seu país que, de diferentes maneiras, marcam a história do jazz. Mas isso está longe de significar pouco envolvimento com a MPB ou com a música instrumental feita por aqui.
Muito pelo contrário. Após sucessivos álbuns dedicados a Milton Nascimento (“Sonhos da Esquina”, 2022) e Edu Lobo (“Considerando”, 2023), em que, integrando o Collectiv do Brasil, revisita dois dos mais preciosos legados de nossa arte musical com desenvoltura e inspiração, o jazzman nascido em Bloomington (Indiana) e radicado em Nova York está lançando “Choro das Águas” (2025).
Neste terceiro trabalho, ele mergulha na obra de Ivan Lins, mais um mergulho de fôlego de Keberle na música brasileira ao lado do Collectiv, quarteto formado em 2018 com os brasileiros Felipe Silveira, Thiago Alves e Paulinho Vicente, e que é uma das várias formações que o instrumentista, compositor e educador vem conduzindo, com frequentes shows, gravações e lançamentos.
Lançou recentemente “Bright Moments” (2024), com o seu octeto, e “Music is Connection” (2024), com o grupo Catharsis, que mereceram uma alentada resenha na edição de janeiro da Downbeat, publicação que é considerada a bíblia do jazz nos EUA. E, agora, às vésperas de completar 45 anos, Keberle está prestes a ingressar na discografia de Mato Grosso do Sul, graças ao diálogo musical com a banda Urbem.
SEMPRE POR AQUI
O músico se aproximou de Sandro Moreno (bateria), Gabriel Basso (baixo), Ana Ferreira (piano) e Bianca Bacha (voz), que formam a Urbem, em março de 2023, quando se apresentou no Campo Grande Jazz Festival e acabou fazendo uma participação especial no show realizado pelo quarteto no festival capitaneado por Franciella Cavalheri e Adriel Santos – evento que, por esse e outros motivos, tornou-se desde sempre um marco na memorabilia musical de Campo Grande.
A convite da Urbem, Keberle voltou à Capital, em 2024, para ensaios, gravações e um concerto, além de uma concorrida masterclass no Sesc Teatro Prosa, que deram ainda mais fornalha para o diálogo musical entre a banda e o trombonista. Amanhã, uma vez mais por iniciativa da banda campo-grandense, eles voltam a se encontrar em grande estilo, no palco do Teatro do Mundo, para o show “Urbem Convida Ryan Keberle”, que promete ser um dos pontos altos do calendário jazzy da cidade neste ano.
Os ingressos estão disponíveis pela plataforma Sympla – R$ 40 por pessoa –, e a apresentação está prevista para começar às 20h. Certamente, mais um capítulo da música instrumental de MS está para ser escrito nesse concerto, que vem sendo aguardado com bastante expectativa pelos fãs da Urbem e – sim, ele já tem iradores por aqui – do músico norte-americano.
REPERTÓRIO
“Neste show, vamos apresentar algumas músicas da Urbem, composições da carreira de Ryan Keberle e também clássicos da MPB e do samba, tudo com uma roupagem jazzística criada a partir dos nossos arranjos. Tanto a Urbem quanto o Ryan compartilham essa vertente de misturar influências diversas em um caldeirão sonoro guiado pelo jazz. E, claro, com muito espaço para a improvisação. Afinal, o Ryan é hoje um dos maiores solistas de trombone do jazz mundial”, anuncia o baterista Sandro Moreno.
O mestre das baquetas adianta que estão previstos alguns convidados especiais, como o saxofonista carioca Giovanni Oliveira, atualmente radicado em Campo Grande, “que já tocou com grandes nomes da música brasileira”. Outro convidado é o cantor e baixista Juninho MPB, do Jota Trio, “que vem desenvolvendo um trabalho interessante, unindo jazz e música brasileira”.
O repertório vai de Cartola a João Donato (1934-2023) e Chico Buarque (“Trocando em Miúdos”), ando por Milton Nascimento (“Vera Cruz”) e Ivan Lins (“Quadras de Roda”) e contemplando ainda standards do jazz e as autorais “Pluma”, de Sandro Moreno, e “Ancient Theory”, de Ryan Keberle.
“Ele é apaixonado pela música brasileira e, com seu histórico tocando nas maiores orquestras de jazz do mundo [como a de Maria Schneider], traz uma estética jazzística única aos clássicos da MPB, algo que nos encanta como músicos”, afirma Moreno.
ÁLBUM
“Vai ser um show muito divertido para a gente”, anima-se o batera da Urbem. A banda gravou um álbum na Itália, em abril de 2016, “Living Room”, e voltou ao país, em julho de 2017, para se apresentar no Festival de Jazz de Fara, ainda com o guitarrista Gabriel de Andrade na formação, antes do ingresso de Ana Ferreira.
“Depois da apresentação no Teatro do Mundo, seguiremos para as gravações de um álbum em conjunto, um projeto nosso que ainda não podemos divulgar por completo, mas que, sem dúvida, será algo muito especial”, garante Moreno.
ENTREVISTA
Foto: Divulgação/Thadeu Lenza“Meu amor pela MPB é incrivelmente profundo” - Ryan Keberle
Por que vir a Campo Grande pela terceira vez?
Estou sempre em busca de oportunidades de fazer música com brasileiros, especialmente no Brasil, para plateias brasileiras, por causa do amor e da iração pela MPB e por meus heróis da música brasileira. O público daí me motiva a apresentar nossas versões desse repertório tão especial e gratificante.
Estou de volta a Campo Grande desta vez não apenas para o show desta sexta-feira, mas também para gravar um álbum bem bacana com a Urbem, sobre o qual ainda não podemos falar muito. Voltarei ao Brasil no fim deste mês para tocar no Rio, Belo Horizonte, São Paulo e Campinas, para marcar o lançamento do próximo álbum do Collectiv do Brasil, “Choro das Águas”, um tributo a Ivan Lins por seu aniversário de 80 anos. Ivan e eu temos, por coincidência, a mesma data de nascimento, 16 de junho.
O que vocês preparam para o show no Teatro do Mundo?
Gastei muito tempo com o pessoal da Urbem discutindo o repertório do show, que será reflexo dos vários estilos que gostamos de ouvir e tocar, incluindo sucessos da MPB, composições originais, tanto minhas quanto do grupo, e alguns clássicos do jazz.
Milton Nascimento, Edu Lobo e Ivan Lins têm sido destaques em seu songbook pessoal da música brasileira. E o Sandro comentou sobre possíveis composições de Cartola, Chico Buarque e João Donato que podem fazer parte do repertório. O que mais diria dessa sua forte ligação com esses nomes?
Meu amor pelo songbook da MPB é incrivelmente profundo e me conecto a tudo relacionado a essa música, inclusive às melodias mais fáceis de inspiração folclórica, às harmonias sofisticadas de pegada jazzística, aos grooves e ritmos contagiantes e à poesia das letras. Quando reinvento essa música, tento honrar o brilho dos originais, mas também interpreto a partir do que sinto e do meu background como um músico de jazz.
E a quanto à Urbem? O que o aproxima da banda?
Eles e eu temos tanto em comum do ponto de vista musical e pessoal. Musicalmente, amamos tanto a música popular quanto a música folclórica brasileira e somos estudantes dessas vertentes, mas somos, do mesmo modo, atraídos pela tradição do jazz e pelas improvisações solo que são o coração do jazz. Então, estamos tentando misturar esses gostos de um jeito parecido.
Você disse para a revista Downbeat, meses atrás, que, para ser um compositor de jazz, não basta só escrever as composições propriamente, mas também e até mais aproveitar as bandas, projetos e parceiros no seu processo criativo de compor. Poderia comentar sobre isso?
Se um compositor não pensa sobre como a sua música será interpretada por músicos de jazz, tanto por alguém que improvisa o solo quanto por uma seção rítmica de acompanhamento, então, esse cara, na minha opinião, não é um compositor de jazz. Todos os grandes compositores de jazz, os do ado e os contemporâneos, fizeram dessa preocupação uma das suas prioridades, incluindo Duke Ellington, Charles Mingus, Gerry Mulligan, Gil Evans e Maria Schneider.
Ao falar sobre “Bright Moments” (primeiro álbum do Ryan Keberle’s Octet), você fez menção à iração por Gil Evans (1912-1988; arranjador canadense que redefiniu o jazz graças ao trabalho com Miles Davis e outras incursões). Quais seriam as maiores contribuições e dons que ele tem em sua opinião?
Gil é o maior arranjador e orquestrador da história do jazz. Sua atenção aos detalhes o faria levar semanas ou mesmo meses para fazer um arranjo, porque ele era tão meticuloso. E isso, combinado ao seu profundo conhecimento da tradição do jazz e à sua fluência na linguagem jazzística, torna a sua música incrivelmente desafiadora e, ainda assim muito, agradável de se tocar, como também de se ouvir.
O que o Ryan trombonista diria para o Ryan pianista?
[Risos] É uma boa pergunta. Eu diria para ele parar por um instante e ouvir a própria voz musical interior e inspiração.
SERVIÇO
“Urbem Convida Ryan Keberle”
Amanhã, no Teatro do Mundo, às 20h,
na Rua Barão de Melgaço, nº 177, Centro.
Ingressos: R$ 40, no link sympla.com.br/evento/urbem-convida-ryan-keberle/2963774
Informações: 67 99696-9774.
Assine o Correio do Estado