Antes mesmo de sua estreia, o longa-metragem “Do Sul, A Vingança”, o primeiro dirigido por Fábio Flecha, causou um certo estardalhaço entre os profissionais do segmento audiovisual do estado por conta da agressiva estratégia de marketing posta em marcha por seus produtores para vender o lançamento. A campanha anunciava a ficção de Flecha como o “primeiro filme produzido 100% no Mato Grosso do Sul a entrar em circuito comercial no Brasil”, o que pareceu exagerado ou mesmo falso, conforme alguns testemunhos.
ANTECEDENTES
Lançado em 1966, “Paralelos Trágicos”, que conta a história de um amor impossível, foi logo evocado por participantes da lista de WhatsApp do Cineclube Campo Grande. O filme dirigido por Abboud Lahdo não somente teve direito à avant-première em São Paulo, como também ganhou uma resenha entusiasmada do cineasta e crítico Rogério Sganzerla (1946-2004), que, no jornal “A Luta Matogrossense”, sob o título de “A Lição dos Lahdo”, escreveu, em 18 de janeiro de 1967:
“Como crítico do Estado de São Paulo quero pôr a mão no fogo, aqui em Campo Grande, pelo filme que os irmãos Lahdo conseguiram fazer contra tudo e todos. Na tradição do cinema brasileiro, eles trabalharam sem apoio dos poderosos públicos, dos banqueiros, dos capitalistas, dos fofoqueiros de esquina e de todo mundo que se julga autoridade em matéria de cinema.”
Mais para trás, marcando o que seria o início do longa-metragismo em território sul-mato-grossense teve “Alma do Brasil” (1932), ficção histórica, baseada na obra de Taunay e dirigida por Líbero Luxardo, que reconstitui a Retirada da Laguna, importante episódio da Guerra do Paraguai (1864-1870), marcado pela morte de mais 900 soldados da coluna brasileira que tentou invadir o país vizinho.
Depois da produção de Lahdo, há produções estreladas e produzidas por David Cardoso, que, inclusive, integra o elenco de “Do Sul”, com direção de importantes nomes, como o argentino Carlos Hugo Christensen (1914-1999), de “Caingangue, A Pontaria do Diabo” (1973), ou o paulista Ozualdo Candeias (1922-2007), que assina o thriller “Caçada Sangrenta” (1974).
E, na filmografia mais recente, aparece, por exemplo, “Honra” (2013), de Alexandre Couto, que quem assistiu afiança apresentar um enredo que até dialoga com a trama de Fábio Flecha, e os longas de terror de Larissa Anzoategui - “Astaroth, Female Demon” (2020), “Domina Nocturna” e “Helldose”, ambos de 2021. Aliás, o pioneirismo na direção feminina merece uma abordagem à parte já que, há duas semanas, Ligia Prieto foi anunciada publicamente como a primeira diretora à frente de um longa com orçamento de R$ 1 milhão em MS.
O custo de “Do Sul, A Vingança”, segundo Flecha, não chega nem à metade disso - R$ 397 mil - e seu modelo de produção é o tema de uma oficina de audiovisual, “Da Ideia à Distribuição”, que a Render Brasil, produtora do filme, realiza gratuitamente, no Sebrae, de segunda à sexta-feira da próxima semana, 09 a 13 junho, das 18h30 às 22h30. O longa-metragem estreou no dias 15 de maio em quatro cidades - Dourados, Três Lagoas, Ponta Porã e Aquidauana - além da capital, permanecendo uma semana em cartaz.
BATALHA
Em Campo Grande, o filme ganhou mais uma semana de projeções no Cinemark, com uma única sessão diária, às 19h30, na semana ada (29/05). A batalha de Flecha e da produtora Tania Sozza agora é dobrar a semana, como se diz no jargão do cinema quando o filme se mantém em cartaz de uma semana para outra, o que só é possível conforme o desempenho de bilheteria. “Do Sul” já conseguiu, na capital, algo que pode ser considerado difícil, sair de cartaz após uma semana da estreia e retornar na semana seguinte.
Isso se deve ao afinco com que Flecha e equipe têm buscado promover o filme, chegando a dar plantões na entrada do cinema, trajando camiseta com a logo da produção e abordando o público em intenso corpo a corpo. Mas, afinal, do que trata o longa? Segundo a sinopse oficial:
“Em busca de material para seu novo livro, o escritor Lauriano parte para a conturbada fronteira entre Mato Grosso do Sul, Paraguai e Bolívia, onde o crime organizado dita suas próprias leis, em busca de um ‘Jacaré’. O que começa como uma simples investigação se transforma em uma jornada inesperada, repleta de ação, conflitos e personagens excêntricos. Em meio ao caos de uma vastidão silenciosa e cheia de contrastes, Lauriano mergulha em uma trama tão perigosa quanto cômica — onde sobreviver é o seu maior desafio.”
CRÍTICA
Ou seja, temos a ambição do protagonista Lauriano, vivido por Felipe Lourenço, temos os riscos que ele corre e os personagens que vão aparecendo para alimentar a conturbada jornada. O tal do Jacaré (Espedito Di Montebranco), chave da investigação do escritor, Febem (Bruno Moser), o ‘cagüete’ de plantão, Dra. Bruna (Luciana Kreutzer), uma representante da lei bem ional e, entre outros, o Coronel Massada, o policial reformado vivido por David Cardoso, que pode ajudar a resolver tudo.
O mérito da realização e o registro na tela de locações clássicas de Campo Grande, como o Hotel Gaspar, vêm provocando comoção em parte do público, que não deixa de manifestar elogios, possivelmente também despertados quando o longa tenta ser engraçado. E Bruno Moser, no seu papel, é até bom para isso. Ver David Cardoso em cena também é uma festa. Com 60 anos de carreira, o ator possui carisma de sobra e um timing que muito bem fariam se pudessem contaminar o longa de modo mais geral. Em que pese toda a caricatura.
Mas a sua participação é um tanto diminuta. E “Do Sul” não se equilibra entre seus propósitos - contar uma história capaz de envolver, por meio da aventura de seu herói, propor a representação de uma suposta alma sul-mato-grossense e lograr a missão de fazer rir por meio de situações exageradas e tiradas que parecem querer soar como ‘punch lines’, mas que acabam, muitas vezes, beirando o patético. Um dos piores momentos é a bem intencionada (?) emergência de um salvador indígena.
E cadê a presença evangélica, hoje tão predominante por essas plagas? Por que reduzir a menção aos caciques da política - há tantos de tão forte ascendência e ética em xeque por aqui mesmo - a um deputado exilado em uma mansão no Rio de Janeiro? E o crescente identitarismo LGBT de Campo Grande, que não mais pode ser ignorado? São aspectos não contemplados na confusa trama que Flecha labuta para dar conta sem conseguir, com interpretações que, no geral, acabam soando biônicas, sem organicidade.
Mas a diversidade sexual, por exemplo, é um tema no qual o diretor pretende investir em seu próximo projeto, conforme adianta na entrevista desta página.
Entrevista com Fábio Flecha
O que o levou a fazer esse filme?
Quando fizemos o curta com o mesmo nome, em 2013, a repercussão foi muito boa. Então começamos a desenvolver o projeto do longa.
A que público você diria que “Do Sul” se destina?
O filme tem diversas influências da década de noventa, uma mistura de ação criminal bem humorada. Acredito que se identifica com quem gosta do cinema pop.
Como se deu a criação da história? Argumento, roteiro, tratamentos.
O roteiro teve a participação do Edson Pipoca. Foram vários tratamentos e duas fases distintas. Em 2018, o roteiro era mais simples, a história em si era mais simples e pretendíamos finalizar em 2019. Porém, com a pandemia e a mudança na política, tivemos de adiar por cinco anos. Aí trabalhamos no roteiro pra readequar a história. Isto é, se aram muitos anos, os atores e atrizes estavam diferentes. Então surgiu a ideia do escritor que seria o condutor da história.
Alguns personagens e mesmo o enredo parecem buscar uma síntese do que seria, de modo geral, uma identidade sul-mato-grossense. Há, de fato, essa intenção?
Os personagens foram inspirados em figuras mitológicas da fronteira de MS. São parte de um recorte de nossa cultura. Uma pequena parte do que seria ser sul-mato-grossense. Pra mostrar nossa identidade cultural, seriam necessários centenas de filmes.
Aliás, como se deu, especificamente, a escolha dos protagonistas?
O elenco foi naturalmente se encaixando, são pessoas extremamente talentosas. Foi só adequar ao perfil de cada personagem.
Acha que o típico sul-mato-grossense se vê representado na tela?
Algumas pessoas comentaram que se viram na tela ou que reconheceram situações que já vivenciaram de alguma forma. Acho que os nascidos nas décadas de sessenta, setenta e oitenta podem reconhecer as lendas da fronteira.
“Do Sul” trata de assuntos sérios (contrabando, fronteira, corrupção, violência), mas recorre à comédia. Por que essa opção?
A comédia é uma ótima forma de abordar assuntos complexos sem deixar de ser entretenimento.
Outra coisa que chama a atenção, antes mesmo de termos contato com o filme em si, é a estratégia de marketing e divulgação. Por que um trabalho de mídia tão agressivo?
Na verdade, a nossa divulgação do filme é modesta se comparada a produções maiores, mesmo produções maiores brasileiras. Levar uma pessoa pra dentro de uma sala de cinema é muito difícil, não só pela concorrência com outros filmes blockbusters, mas pelo custo de ir ao cinema, pelos serviços VOD como Netflix, o futebol, os novos games lançados. Enfim, temos de tentar (de) tudo ao nosso alcance para mostrar às pessoas que o filme está em cartaz.
O que considera como ponto forte e o que faria diferente em “Do Sul, a Vingança” ao ver o resultado final do filme?
Fizemos o melhor possível dentro de nossas limitações orçamentárias, acho que o esforço trouxe autenticidade pro filme. Essa autenticidade talvez seja o ponto forte dessa obra. Nunca pensamos em mudar nada, mas, se tivéssemos mais orçamento, talvez mais locações na fronteira dariam mais beleza à fotografia.
Quais os seus próximos projetos?
Em breve começaremos a rodar uma nova ficção, uma comédia chamada “Não Me Lembro”, de temática LGBTQIA+. Também estamos trabalhando em uma ficção inspirada em Silvino Jacques.
Como vê a produção de cinema mais recente em MS?
A Lei Paulo Gustavo conseguiu fomentar a produção local. Vários colegas estão trabalhando em diferentes projetos de ficção e documentário, embora todos os orçamentos sejam modestos. A produção é um desafio, mas logo em seguida vem a distribuição, um desafio tão grande quanto a produção. Acredito que pode vir muita coisa boa por aí.